Nos anos 70, no estouro dos filmes urbanos do crime com Táxi Driver e O Poderoso Chefão, surgiu o cinema marginal, que mostrava os becos da cidade, seu lado podre e sujo (que contrastava com a versão romântica que a conservadora Hollywood gostava de preservar). Cineastas como Scorsese e De Palma se consagraram a partir dai - mas foi na década de 90 que tudo chegou ao ápice.
Ápice porque filhotes (agora já 'pais') como Abel Ferrara, David Fincher, Tarantino e o próprio Scorsese (evoluído) elevaram tudo a grandes níveis, quase como uma reação ao grande estouro que acontecia nos EUA naquele momento: o consumismo.
O Rei de Nova York (coincidentemente lançado no mesmo ano que Os Bons Companheiros) é o que dá o ponta pé pra isso - um dos primeiros grandes trabalhos de Ferrara.
A história do filme é que, ao sair da prisão, Frank White quer readquirir seu controle sobre Nova York. Para restabelecer sua base de distribuição de drogas tem de acertar velhas contas com a máfia e com o submundo chinês. Três policiais seguem passo a passo o crescimento de seu poder. Obstinados em destruí-lo, utilizam-se dos piores meios.
Começando pelo protagonista ('o rei de NY'), interpretado de forma excelente por Christopher Walken (que realmente capta as sutilezas do personagem - que irei discutir adiante), que não é um simples bandido unidimensional, mas sim, devido à sua profundidade, consegue até mesmo estimular discussões sociais importantes. Ao contrário de seus colegas ele é sim envolvido em projetos sociais e quer, mesmo que por meios extremamente brutais, mudar (pelo menos um pouco) a cidade pra melhor - e não só encher o rabo de dinheiro (mas não se engane: esse também é um de seus objetivos).
Interessante também é notar como ele transita entre a classe pobre (seus ajudantes) e a rica, frequentando desde os restaurantes mais badalados da aristocracia até becos de puteiros marginais - pega até mesmo o metrô! Há também um diálogo com a obra de Murnau (explicitamente citado), como se Ferrara nos indicasse que Frank é um Nosferatu do mundo moderno.
Mundo moderno este que Ferra sabe explorar. Nesse sentido, sua obra é uma das mais intensas viagens à cidade de Nova York (o lado bom e o lado ruim), explorando seu lado morto e outro extremamente pulsante. Portanto, entramos de fundo na cultura negra com seus famosos hip hops, assim como no mundo do crime - com a violência seca -, o mundo do mercado, do tráfico, das corporações (os prédios engolindo o resto) e da Lei. Um show caótico de luzes, sombra, som, fumaça e sangue (visual que lembra muito as cidades oitentistas do cinema americano).
A trilha que acompanha o protagonista, grave e rítmica, da o tom de marginalidade, imprevisibilidade e, acima de tudo, paranoia - é de arrepiar. As perseguições são filmadas com maestria por Ferrara, que explora a tensão, humor e crítica, assim como engradece suas sombras de heróis com seus contra-plongées, manipulando perfeitamente as cores, seja a desoladora noite azul até o opressor dia claro. Toda essa composição genial para um clímax aterrorizante, que desconstrói toda a lenda anterior - tal como ele desconstruiu sua Nova York.
NOTA:
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